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sábado, 28 de maio de 2011

AINDA MAIS DOENÇAS MENTAIS?

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), publicado pela American Psychiatric Association, é o método oficial de se fazerem diagnósticos psiquiátricos nos Estados Unidos, sendo também amplamente utilizado ao redor do mundo, em especial com propósitos de pesquisas. A atual edição, o DSM-IV, foi publicada em 1994. A primeira versão da próxima revisão, o DSM-V, foi postada recentemente na Internet (www.dsm5.org) e foi acompanhada por considerável fanfarra por parte da imprensa e também por controvérsia profissional.



O DSM-V está sendo preparado há três anos, e seu lançamento está previsto para 2013.

A experiência com o DSM-IV deveria servir como uma dura lição e ser motivo de cautela. Foram engendrados esforços para que fosse conservador e rigoroso. No entanto, o DSM-IV foi um colaborador não intencional para o surgimento de três “epidemias” de falso-positivos. Sua publicação coincidiu com altas taxas de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, transtorno autista e transtornos bipolares na infância. Cabe ressaltar que outros fatores contribuíram para essas epidemias, particularmente o esforço generalizado do marketing por parte das indústrias farmacêuticas, voltado para os médicos e para o público em geral.



Quando o sistema diagnóstico encontra-se em uso geral, mesmo pequenas mudanças podem ser amplificadas e distorcidas, com consequências lesivas e não intencionais. As propostas contidas na primeira versão do DSM-V poderiam potencialmente disparar pelo menos oito novas epidemias de falsos-positivos para transtornos psiquiátricos. Em seus esforços para inovar, os grupos de trabalho podiam expandir o território do transtorno mental e estreitar a faixa de normalidade. Com isso, cinco novos diagnósticos propostos são definidos por sintomas inespecíficos comuns na população geral – comer compulsivo, ansiedade e depressão mistas, problema neurocognitivo menor, risco de psicose e desregulação de humor. Três transtornos já existentes teriam uma grande diminuição em seu limiar já inclusivo demais: o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade, o transtorno bipolar e o transtorno depressivo maior.



As mudanças sugeridas para o DSM-V são bem intencionadas, pretendendo promover a identificação e o tratamento precoces de transtornos mentais e reduzir a resistência ao tratamento. O problema é que cada aumento na sensibilidade de um diagnóstico psiquiátrico é acompanhado por uma queda concomitante em sua especificidade. Falso-negativos só podem ser reduzidos ao custo de se produzirem mais falso-positivos. Como as alterações sugeridas ocorrem todas no limite entre o transtorno mental e a normalidade, elas poderiam criar um grande número de novos “pacientes” diagnosticados de maneira errônea.



As consequências disso são graves. Para os indivíduos, elas incluem o tratamento desnecessário com medicamentos que não têm benefícios comprovados, porém têm danos conhecidos (particularmente ganho de peso); estigma; dificuldade para conseguir seguros de vida e para incapacidade; e redução no senso de responsabilidade e controle próprios. Para a sociedade, há o ônus do tratamento desnecessário; o desvio de recursos escassos de pessoas que necessitam deles para pessoas que, em essência, não necessitam; e redução no moral e na resiliência, pois os problemas da vida diária se tornam medicalizados como transtornos mentais.



A identificação e a intervenção precoces exigem a disponibilidade de um diagnóstico específico (com baixa taxa de falso-positivos) e de um tratamento seguro e eficaz. As sugestões para o DSM-V ofereceriam o pior de todos os mundos possíveis, pois lançariam uma rede ampla o suficiente para garantir a cobertura dos falsos-positivos. Além disso, a eficácia dos tratamentos correspondentes ainda não foi comprovada, e sua segurança – em especial a dos antipsicóticos atípicos, que podem causar ganho de peso – está sob dúvida.



Há 200 anos, Pinel definiu o domínio da psiquiatria com a primeira classificação sistemática de seus transtornos. Cada novo sistema a partir de então expandiu progressivamente seus limites. Os transtornos antigos quase nunca são descartados; no entanto, novos transtornos e limiares mais baixos tomaram mais espaço na normalidade. Quem é responsável por isso? As classificações psiquiátricas são inevitavelmente criadas por especialistas. Especialistas têm pavor de falso-negativos, porém podem ficar cegos aos problemas dos falso-positivos. Desse modo, deve-se estar ciente de que os transtornos originados e estudados em ambientes altamente seletivos de pesquisa criam vida própria quando transplantados para o contexto de atenção primária e alimentados por promoções da indústria farmacêutica. O entusiasmo dos especialistas deveria ser sempre contido por uma cuidadosa análise de risco-benefício incluindo uma revisão crítica da literatura científica, testes de campo em atenção primária e consideração de todas as possíveis consequências não intencionais. Tais análises provavelmente mandariam por “água abaixo” a perspectiva de todos os diagnósticos falsos-positivos sugeridos para o DSM-V e, portanto, nos poupariam de ter mais uma rodada de caras e perigosas epidemias iatrogênicas.

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