CONCEITO
A síndrome de abstinência do álcool (SAA) é um
conjunto de sinais e sintomas de desconforto físico
e psíquico que acompanha a redução e/ou a
diminuição da dose usual de consumo.
BASES NEUROBIOLÓGICAS
A SAA é resultado de um processo neuroadaptativo
(quadro 1.1). O sistema nervoso central funciona
de maneira equilibrada, por meio de um padrão
definido pela genética e pelo desenvolvimento
neuropsicomotor de cada indivíduo.
A presença constante e prolongada do álcool
compromete tal estado (figura 1.1), fazendo com que
o sistema nervoso lance mão de mecanismos de
neuroadaptação (quadro 1.2), para restabelecer a
homeostase habitual.
Este novo padrão de funcionamento neuroadaptado
considera a presença constante da substância e se
aproxima bastante do equílibrio habitual do indivíduo.
Desse modo, pode-se entender porque a maioria dos
dependentes não bebe para ‘encher a cara’ ou ‘ficar
bêbado’, mas apenas para obter a dose necessária para a mantenção do equilíbrio cerebral, a partir do qual será
capaz de realizar suas tarefas físicas e cognitivas habituais, algumas vezes com bastante eficiência.
A neuroadaptação à presença do álcool torna o SNC mais sensível à redução ou ausência do mesmo. Assim, as
neuroadaptações, serão a causa dos sintomas de desconforto físico e mental frente a falta do álcool, conhecidos por
síndrome de abstinência (figura 1.2). Enquanto o álcool estava presente, o mesmo tamponava o sistema glutamato
e os canais de cálcio (sensibilizados) e estimulava o sistema GABA (desensibilizado) (quadro 1.1). Com a sua saída,
o sistema glutamato, mais sensível e forte que GABA, começa a disparar e a estimular o sistema nervoso como um
todo: eis o início dos sintomas de abstinência.
QUADRO 1.1: MECANISMO DE NEUROADAPTAÇÃO
ALCOÓLICA
SISTEMA GABA
O álcool atua como agonista gabaérgico direto, particularmente na
sub-unidade GABA-A. Como o sistema GABA está difusamente
espalhado pelo SNC, o efeito agudo (inicial) do consumo de álcool é
ansiolítico e sedativo.
A presença constante e prolongada do álcool leva ao surgimento de
neuroadaptações, visando a equilibrar os efeitos agudos e crônicos
do álcool sobre o SNC. Deste modo, ocorre uma downregulation
dos receptores GABA. O resultado é uma diminuição na sensibilidade
do sistema.
SISTEMA GLUTAMATO
O álcool atua como antagonista glutamatérgico direto. Ao contrário do
sistema GABA, o sistema glutamato é excitatório, envolvido em funções
cognitivas como atenção e memória. A fim de compensar a ação
inibitória do álcool sobre este sistema, há uma upregulation dos
receptores glutamato. Tais modificações deixam o sistema ‘mais
irritável’, com redução do limiar convulsivo.
PROTEÍNAS DOS CANAIS DE CÁLCIO
Toda a vez que um neurônio é ativado eletricamente, o cálcio flui para
dentro da célula através de proteínas denominadas canais de cálcio.
Parte do controle sobre tais canais é realizado pelos sistemas GABA
(inibitório) e glutamato (excitatório).
Frente ao uso prolongado de álcool, ocorre uma upregulation dos
canais de cálcio, visando a compensar lentificação do sistema. Tal
adaptação acabar por deixar o sistema mais sensível e irritável frente
a redução ou interrupção do consumo de bebidas alcoólicas.
FONTE: Finn DA, Crabbe JC. Exploring alcohol withdrawal syndrome.
Alcohol World Health Res 1997; 21(2): 149-56.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 1
ÁLCOOL
ADAPTAÇÃO ÁLCOOL
ADAPTAÇÃO
ABSTINÊNCIA
CONSUMO DE
ÁLCOOL
EFEITOS
AGUDOS
NEUROADAPTAÇÃO
[OPOSIÇÃO & PREJUÍZO]
TOLERÂNCIA
AOS EFEITOS
DO ÁLCOOL
DIMINUIÇÃO OU
INTERRUPÇÃO
DO ÁLCOOL
SÍNDROME DE
ABSTINÊNCIA
RECUPERAÇÃO DAS
NEUROADAPTAÇÕES
SNC EM
EQUILIBRIO
[HOMEOSTASE]
QUADRO 1.2: TIPOS DE NEUROADAPTAÇÃO
NEUROADAPTAÇÃO DE PREJUÍZO [TOLERÂNCIA]
A adaptação de prejuízo consiste no desenvolvimento de mecanismos
que dificultam a ação da droga sobre as células, tais como redução
do número / sensibilidade dos receptores à substância em questão
ou aumento da eficiência do corpo na metabolização e eliminação
da droga. A partir dessas modificações, a quantidade habitual de
droga consumida não provocará no usuário os efeitos positivos que
buscava, fazendo o usuário buscar doses maiores ou vias de
administração mais efetivas fenômeno conhecido por tolerância.
NEUROADAPTAÇÃO DE OPOSIÇÃO [SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA]
Apesar de também causar tolerância, a adaptação de oposição está
relacionada ao aparecimento da síndrome de abstinência nos
dependentes de substâncias psicoativas. A adaptação de oposição
consiste num mecanismo para derrotar os efeitos da presença da
droga através da instituição de uma força oponente dentro da célula.
Este tipo de alteração tem claramente um potencial, quanto exposto
à remoção da droga, de produzir transtornos funcionais na direção
oposta àquela causada originalmente pela droga.
FIGURA 1.1: A hipótese de Himmelsbach (1941) para a dependência do álcool. O sistema nervoso central funciona em homeostase (equilíbrio).
O consumo de álcool produz alterações a partir de seus efeitos agudos. Frente ao uso freqüente e prolongado da substância, o organismo provoca
neuroadaptações (oposição e prejuízo), com a finalidade de recuperar o equilíbrio perdido. Nessa fase, os efeitos do álcool para dose habitualmente
consumida estão diminuídos (tolerância). Com a interrupção do consumo, a adaptação emerge, fazendo surgir uma sintomatologia no sentido
oposto aos efeitos do álcool. É a síndrome de abstinência, que durará enquanto o equilíbrio anterior (sem álcool) não for restabelecido.
FONTE: Littleton J. Neurochemical mechanisms underlying alcohol withdrawal. Alcohol World Health Res 1998; 22(1): 13-24.
Segundo Littletton & Harper (1994), “a tolerância implica
na capacidade da célula de se adaptar à presença dos
agentes farmacológicos em seu ambiente para
reassumir uma função relativamente normal. Em outras
palavras, uma concentração mais alta da droga será
necessária para produzir as mesmas perturbações
funcionais que foram produzidas na primeira exposição
da célula à droga”. Isso é diferente da resistência à
droga: as bactérias resistentes aos antibióticos
funcionam normalmente com ou sem a presença destas
substâncias. Os antibióticos não as afetam
bioquimicamente. Dessa forma, os autores afirmam
que “a dependência celular implica em adaptação à
presença da droga, mas nesse caso a adaptação é tão
severa que a célula não pode funcionar normalmente
na ausência desta substância. Assim, uma perturbação
funcional (síndrome de abstinência) ocorrerá quando
da remoção da droga”.
FONTE: Littleton JM, Harper JC. Tolerância e dependência celular.
In: Edwards G, Lader M. A natureza da dependênciad de drogas.
Porto Alegre: Artmed, 1994.
2 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
FIGURA 1.2: Os efeitos do álcool durante a exposição e a abstinência. A linha-zero representa uma medida hipotética de
excitabilidade global do cérebro. De acordo com as principais parâmetros fisiológicos ou comportamentais, a administração
aguda de álcool produz um quadro estimulante de curta duração (pequena elevação acima da linha-zero), seguido por depressão
ou sedação (depressão acentuada abaixo da linha-zero). A administração continuada (uso crônico) causa adaptações neuronais
que reduzem os efeitos perturbadores iniciais do álcool e resultam em tolerância. A dependência física indica que o álcool é
necessário para balancear as adaptações neuronais e manter a função cerebral normal. A diminuição ou remoção do álcool do
corpo induz um rebote de efeito estimulatório, resultando em hiperexcitabilidade do sistema nervoso (síndrome de abstinência).
FONTE: Finn DA, Crabbe JC. Exploring alcohol withdrawal syndrome. Alcohol World Health Res 1997; 21(2): 149-56.
QUADRO CLÍNICO
A maioria daqueles que desenvolvem a síndrome de abstinência do álcool possui cerca de cinco a dez anos de uso
regular da substância, numa média acima de 2 UI/dia para as mulheres e 3UI/dia para os homens (quadro 1.3). A
intensidade do quadro clínico está diretamente relacionada ao tempo e a quantidade de álcool consumida previamente.
Portanto, conforme ilustrado na figura 1.2, a tolerância aos efeitos do álcool se desenvolve de modo mais precoce e
isoladamente não caracteriza um transtorno relacionado ao consumo de álcool. Já o aparecimento de sintomas de
abstinência devem ser antecedidos por um período considrável de uso perene e acima dos padrões considerados
normais.
(volume da bebida x concentração alcoólica) x 0,8
10 gramas
QUADRO 1.3: Cálculo da Unidade Internacional de Álcool (UI). A operação entre parenteses fornece o volume de álcool em
mililitros (ml). Para se obter o equivalente em gramas de álcool, o produto deve ser multiplicado por 0,8. Uma UI equivale a 10 gramas
de álcool (1 UI = 10 g de álcool), deste modo, o produto da segunda operação deve ser dividido por 10.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 3
FIGURA 1.3: Bases neurobiológicas da sintomatologia da síndrome de abstinência do álcool (SAA). Os sintomas autonômicos, responsáveis pela
apresentação florida e exuberante da SAA, são resultado da ação noradrenérgica intensa, estimulada pelo sistema glutamato em hiperatividade. Os
sintomas confusionais advém da combinação entre a atividade glutamatérgica exacerbada e a gabaérgica nula. Todos os sintomas descritos
anteriormente podem ser potencializados pelo aumento generalizado dos canais de cálcio, deixando o sistema mais sensível e irritável. Quanto
maior a duração e a quantidade do consumo de álcool ao longo dos anos, mais profundas serão as neuroadaptações nos sistemas descritos acima
e por conseguinte, mais numerosos e intensos os sintomas. FONTE: Marques ACPR, Ribeiro M. Álcool. In: Ribeiro M, Marques ACPR. Usuários de
substâncias psicoativas. São Paulo: CREMESP / AMB; 2002.
Nos primeiros tempos, o quadro clínico é eminentemente psíquico e muitas vezes a família e o próprio paciente não
o relacionam ao consumo de álcool. A maior parte dos dependentes (70 - 90%) apresenta uma síndrome de
abstinência entre leve e moderada, caracterizada por tremores, insônia, ansiedade e inquietação psicomotora.
Outros sintomas que podem estar presentes são sudorese, cefaléia, taquicardia, aumento da temperatura e da
pressão arterial, náusea, vômito, midríase, câimbra e dores musculares (todos de natureza autonômica) e alterações
da marcha (ataxia). Psiquicamente, observam-se, além da ansiedade e inquietação, irritabilidade, piora da
concentração e em casos mais sérios, quadros alucinatórios transitórios, sem rebaixamento do nível de consciência
(quadro 1.4). As bases neurobiológicas dos sintomas descritos acima podem ser encontradas na figura 1.3.
HIPOATIVIDADE
DOPAMINÉRGICA
REFORÇO NEGATIVO,
DISFORIA
HIPOATIVIDADE GABAÉRGICA
ANSIEDADE, CONVULSÕES,
HIPERESTIMULAÇÃO GLUTAMATÉRGICA
HIPERATIVIDADE
GLUTAMATÉRGICA
CONFUSÃO MENTAL, ALUCINAÇÕES,
CONVULSÕES
AUMENTO DA DENSIDADE DE
CANAIS DE CÁLCIO
AUMENTO GENERALIZADO DA ATIVIDADE
ELÉTRICA, POTENCIALIZANDO OS EFEITOS
DOS NEUROTRANSMISSORES,
CONTRIBUINDO PARA OS SINTOMAS DA SAA
HIPERATIVIDADE NORADRENÉRGICA
SINTOMAS AUTONÔMICOS, TAIS COMO
TREMORES, SUDORESE, TAQUICARDIA,
MIDRÍASE, AUMENTO DA TEMEPRATURA E DA
PRESSÃO ARTERIAL, ...
SAA
Os tremores são o achado semiológico mais comum na síndrome de abstinência do álcool,
podendo variar desde uma queixa subjetiva por parte do paciente (‘tremores internos’) ,
passando por um quadro discreto e isolado e chegando a tremores intensos e grosseiros,
associados a uma sintomatologia autonômica exacerbada (figura 1.3).
A SAA se inicia cerca de 6 - 48 horas após a última dose e, por ser autolimitada, dura cerca
de 7 a 10 dias, quando todos os sintomas remitem completamente (figura 1.4).
4 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
FIGURA 1.4: Evolução da SAA. Quadros leves (os mais comuns)
possuem curtíssima duração (cerca de 24 horas) e em geral respondem
apenas a abordagens suportivas (hidratação, alimentação, ...). Quadros
moderados já apresentam sintomas autonômicos pronunciados, além
de sintomas psiquiátricos, tais como alucinações, sem rebaixamento
do nível de consciência. A duração da crise gira em torno de uma
semana. Por volta do terceiro dia, a SAA pode se complicar e evoluir
para um quadro de rebaixamento do nível de consciência, com confusão
mental e sintomas autonômicos intensos, denominado delirium tremens.
FONTE: Marques ACPR, Ribeiro M. Álcool. In: Ribeiro M, Marques
ACPR. Usuários de substâncias psicoativas. São Paulo: CREMESP /
AMB; 2002.
QUADRO 1.5: ESTÁGIOS DA SAA
ESTÁGIO INÍCIO SINAIS & SINTOMAS
(HORAS)
1 6 - 8 tremor, ansiedade,
aumento da freqüência
cardíaca e da PA, náusea,
vômito e cefaléia
2 24 alucinações
3 7 - 48 convulsões tipo GM
4 72 ou + hiperatividade
autonômica,
delirium tremens
FONTE: Finn DA, Crabbe JC. Exploring alcohol withdrawal
syndrome. Alcohol World Health Res 1997; 21(2): 149-56.
QUADRO 1.4: CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS PARA A
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL (SAA)
ESTADO DE ABSTINÊNCIA (F10.3)
A. Deve haver evidência de interrupção ou redução do uso de
álcool após uso repetido, usualmente prolongado e em
altas doses.
B. Três dos sinais devem estar presentes:
(1) tremores da língua, pálpebras ou das mãos
quando estendidas
(2) sudorese
(3) náusea, ânsia de vômito ou vômito
(4) taquicardia ou hipertensão
(5) agitação psicomotora
(6) cefaléia
(7) insônia
(8) mal-estar ou fraqueza
(9) alucinações visuais, táteis ou auditivas transitórias
(10) convulsão tipo grande mal
Se o delirium está presente, o diagnóstico deve ser estado de
abstinência alcoólica com delirium (delirium tremens) (F10.4),
sem ou com convulsões (F10.40 e F10.41).
FONTE: CID - 10 / ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).
Os primeiros sintomas aparecem algumas horas após
a redução / interrupção do consumo (quadro 5), sendo
os tremores, a ansiedade e sintomas análogos à
ressaca (náusea, vômito, cefaléia), o quadro mais
comum. Geralmente, respondem bem a abordagens
suportivas e desaparecem em cerca de 24 horas.
Em boa parte dos pacientes, porém, há surgimento
de alucinações transitórias nas primeiras 24 horas.
A crítica sobre a natureza das mesmas é variada,
podendo ser encarada como um sinal de doença ou
contextualizada dentro de um julgamento delirante.
Cerca de 5% dos pacientes não tratados evoluem com
crises convulsivas do tipo grande mal. Noventa por
cento das crises acontecem entre 7 e 48 horas após
a interrupção do consumo de álcool. Há ocorrência
de múltiplas crises em metade dos casos.
Cerca de 5% dos pacientesevolui com confusão
mental, hiperatividade autonômica e agitação
psicomotora, fenômeno denominado delirium tremens
(DM). Cerca de um terço destes são antecedidos por
crises convulsivas. O DM é considerado uma
complicação da SAA. Devido a sua importância, esta
entidade nosológica será tratada adiente com mais
detalhes.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 5
CRITÉRIOS DE GRAVIDADE
Desse modo, além de estabelecer o diagnóstico da SAA, é necessário
estabelecer a gravidade da mesma. Esta pode variar desde desde um
quadro eminentemente psíquico (insônia, irritabilidade, piora das funções
cognitivas) até outros, marcadamente autonômicos, com delirium e crises
convulsivas.
SAA NÍVEL I
Trata-se da SAA leve e moderada. Ela aparece nas primeiras 24 horas
após a última dose. Instala-se em 90% dos pacientes e cursa com
agitação, ansiedade, tremores finos de extremidades, alteração do sono,
da senso-percepção, do humor, do relacionamento interpessoal, do
apetite, sudorese em surtos, aumento da freqüência cardíaca, pulso e
temperatura. Alucinações são raras (quadro 1.6 e 1.12).
SAA NÍVEL II
É a SAA grave. Cerca de 5% dos pacientes evoluem do estágio I para o
II. Isso se dá cerca de 48 horas da última dose. Os sinais autonômicos
são mais intensos, os tremores generalizados, apresentam alucinações
auditivas e visuais e desorientação temporo-espacial (quadro 1.7 e 1.12).
TRATAMENTO
Indivíduos com SAA podem ser tratados com eficácia e segurança tanto
em hospitais ou clínicas (internação), quanto em ambulatórios. Não existe,
porém, um conjunto de critérios capaz de indicar com precisão qual dos
ambientes é o mais adequado.
A desintoxicação ambulatorial é menos dispendiosa e mais confortável
para o paciente, respeita sua rotina e favorece a permanência deste em
seu grupo de convívio. Além disso, a grande maioria dos casos é leve ou
moderada (nível I de gravidade), com evolução benigna.
No entanto, algumas complicações clínicas da SAA colocam seus
portadores sem sério risco de morte e são indicação inconteste de
internação. Tais complicações, porém, podem estar ausentes nas primeiras
horas da SAA, fazendo com que o médico a tome por leve e indique o
tratamento ambulatorial erroneamente.
QUADRO 1.7: SAA NÍVEL II
QUADRO CLÍNICO
Tremores grosseiros de extremidades
Inquietação psicomotora intensa
Sudorese profusa
Cefaléia
Náusea com vômito
Crise convulsiva (recente ou pregressa)
EXAME PSÍQUICO
Piora da orientação no tempo e espaço
Juízo crítico da realidade alterado
Ansiedade intensa
Pensamento desorganizado
Alucinações visuais, auditivas e/ou táteis
INDICAÇÃO DE TRATAMENTO
Internação até a remissão dos sintomas.
QUADRO 1.6: SAA NÍVEL I
QUADRO CLÍNICO
Tremores finos de extremidades
Inquietação psicomotora (geralmente leve)
Sudorese facial discreta
Cefaléia
Náusea sem vômito
EXAME PSÍQUICO
Orientado no tempo e espaço
Juízo crítico da realidade mantido
Levemente ansioso
INDICAÇÃO DE TRATAMENTO
Tratamento ambulatorial com retornos
diários ou em dias alternados.
FONTE: Marques ACPR, Ribeiro M. Álcool. In:
Ribeiro M, Marques ACPR. Usuários de
substâncias psicoativas. São Paulo: CREMESP
/ AMB; 2002.
FONTE: Marques ACPR, Ribeiro M. Álcool. In:
Ribeiro M, Marques ACPR. Usuários de
substâncias psicoativas. São Paulo: CREMESP
/ AMB; 2002.
6 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
QUADRO 1.8: INDICAÇÕES RELATIVAS PARA
DESINTOXICAÇÃO DA SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA DO
ÁLCOOL EM REGIME FECHADO.
Histórico de síndromes de abstinência consideradas graves
Histórico de convulsões durante a síndrome abstinência e/ou delirium.
Múltiplas desintoxicações anteriores
Presença de comorbidades clínicas e / ou psiquiátricas
Consumo de álcool em altas doses nos últimos tempos
Carência de suporte social adequado
Gravidez
FONTE: Myrick H, Anton RE. Treatment of alcohol withdrawal. Alcohol World
Health Res 1998; 22(1): 38-43.
Mesmo não sendo possível estabelecer um
protocolo seguro para a indicação do ambiente de
tratamento da SAA, algumas considerações podem
nortear o trabalho do médico neste sentido.
Sempre que possível, o tratamento ambulatorial
deve ser indicado. Obviamente, tal conduta deve
ser seguida de um encaminhamento rápido e
garantido para o serviço ambulatorial de referência
(encaminhar o paciente do PS para algum serviço
ambulatorial que ele e sua família vão ver se tem
vaga, é uma negligência médica). Além disso, as
primeiras intervenções clínicas devem ser feitas
pelo médico responsável pelo encaminhamento.
Alguns dados da história (quadro 1.8) auxiliam esta tomada de decisão. Assim, pacientes em primeiro episódio, sem
histórico de consumo extremamente pesado de álcool, sem complicações clínicas ou psiquiátricas e com um bom
suporte social, podem ser tratados em casa. O comparecimento ao ambulatório é diário, visando à detecção rápida
de qualquer piora na evolução da SAA. Além disso, a família deve
ser orientada (de preferência por escrito) acerca dos principais sinais
e sintomas sugestivos de má evolução do quadro e orientada a retornar
ao ambulatório prontamente ou procurar um serviço de emergência.
Tratamento clínico suportivo
A SAA, com freqüência, vem acompanhada por alguns distúrbios ou
patologias (quadro 1.9 e 1.10), capazes de simular e/ou exacerbar
seus sinais e sintomas ou ainda comprometer a boa evolução do
tratamento. Deste modo, o cuidado suportivo visa ao tratamento de
tais enfermidades e à melhora do estado nutricional dos pacientes.
Todas as patologias associadas à SAA podem ser detectadas a partir
da anamnese / exame físico e confirmadas por exames laboratoriais
e de imagem (vide em delirium tremens - quadro 2.9).
Manejo não-farmacológico
O tratamento clínico suportivo não-farmacológico consiste na
construção de uma ambiente continente e provedor de poucos
estímulos sensoriais, ou seja, um ambiente quieto, à meia luz, com
pouca interação pessoal, reasseguramento por parte da equipe e
oferta / reposição de líquidos e nutrientes. Tal procedimento é suficiente para 75% dos pacientes (síndrome de
abstinência leve - quadro 1.12). No entanto, não há critérios objetivos para sua indicação
QUADRO 1.9: PATOLOGIAS COMUMENTE
ENCONTRADAS EM PACIENTES COM SAA.
* Desidratação
* Distúrbios hidroeletrolíticos
(sódio, potássio e magnésio)
* Desnutrição
* Deficiência de vitaminas do complexo B
(tiamina e ácido fólico)
* Hipoglicemia / Diabetes
* Eplepsia
(quadros pós-ictais)
* Parkinsonismo
* Demência
* Hipo / Hipertermia
* Hipertensão arterial sistêmica
* Anemia carenciais (megaloblástica)
(macrocítica - hipocrômica)
* Arritmiascardíacas
* Insuficiência cardíaca congestiva
* Hemorragia digestiva alta
* Hepatopatias
(hepatite, esteatose, cirrose)
* Pancreatite alcoólica
* Doenças infecciosas
(p.e. tuberculose, sepsis, broncopneumonia)
FONTE: Trevisan LA, Boutros N, Petrakis IL, Krystal
JH. Complications of alcohol withdrawal. Alcohol
World Health Res. 1998; 22(1): 61-6.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 7
QUADRO 1.10: COMPLICAÇÕES CLÍNICAS
POSSÍVEIS DURANTE A SAA
ALTERAÇÕES NO EQUILÍBRIO ÁCIDO-BASE
A hiperventilação, associada ao aumento dos
níveis de catecolaminas pode levar à alcalose
respiratória. Por sua vez, vômitos repetidos
(expoliação de HCl) podem provocar alcalose
metabólica.
ALTERAÇÕES NO EQUILÍBRIO
HIDRO-ELETROLÍTICO
A ocorrência de vômitos repetidos, diarréia e
sudorese excessiva provocam depleção do
líquidoextracelular deixando o indivíduo mais
suceptível a apresentar hiponatremia e
hipocalemia. No primeiro caso, há ocorrência
de mialgias, câimbras e convulsões; no segundo
hiporreflexia, fraqueza muscular e alterações
específicas do ECG.
Pacientes com SAA apresentam com freqüência
hipomagnesemia. Há uma relação de
causalidade direta entre os níveis de magnésio e
a ocorrência de convulsões e delirium. Deste
modo, é importante diagnosticar prontamente tal
carência e providenciar sua reposição logo no
início do tratamento suportivo.
HIPOVITAMINOSES
Usuários crônicos de álcool tendem a apresentar
carência de vitaminas, especialmente as
hidrossolúveis. As causas principais de tal
fenômeno são a baixa ingestão de alimentos e a
má-absorção de vitaminas do complexo B pelo
aparelho digestivo, devido à baixa produção de
fator intrínseco.
Ácido fólico (B9)
A carência de ácido fólico leva à anemia
megaloblástica em um curto espaço de tempo.
Os sintomas comuns desta deficiência são o
cansaço e a perda de energia e de vontade. Pode
ocorrer uma sensação de boca e lingua doridas.
Tiamina (B1)
A deficiência marginal é acompanhada de
irritabilidade e piora da concentração, evoluindo
na franca para a síndrome de Wernicke-
Korsakoff e neuropatias periféricas.
FONTE: Erazo GAC, Pires MCB. Manual de
urgências em pronto-socorro. Rio de Janeiro: Medsi;
2000.
exclusiva. Além disso o uso da farmacoterapia desde o início pode
proteger o paciente de complicações neurotóxicas, tais como
convulsões e kindling. Além disso, permite ao mesmo receber alta
hospitalar em um espaço de tempo bem menor.
Manejo clínico suportivo farmacológico
O tratamento farmacológico para a SAA consiste na administração
de substâncias capazes de aliviar o quadro de hiperatividade
glutamatérgica e hipoatividade gabaérgica resultantes da
neuroadaptação à presença constante do álcool no SNC. Tais
medicamentos possuem tolerância cruzada com o álcool, por agirem
nos mesmos receptores (GABA-A) (figura 1.4). Deste modo, aliviam
de imediato os sintomas de abstinência e sua retirada gradual permite
uma readaptação paulatina do sistema nervoso central (SNC) à
abstinência alcoólica.
FIGURA 1.4: Receptor GABA. Assim como o álcool, os
benzodiazepínicos (BDZ) também possuem sítios de ligação no receptor
GABA-A. Como agem sobre o mesmo receptor, possuem tolerância
cruzada. Desse modo, os BDZ podem ser utilizados para estimular o
sistema GABA durante o período mais crítico da síndrome de abstinência.
Sua retirada gradual possibilita uma readaptação paulatina do sistema
nervoso à ausência do álcool. FONTE: Mihic SJ, Harris RA. GABA and
the GABA-A receptor. Alcohol World Health Res 1997; 21(2): 127-31.
álcool
BDZ
barbitúrico
8 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
QUADRO 1.11: PARÂMETROS TERAPÊUTICOS DOS BENZODIAZEPÍNICOS (BDZ).
BDZ Meia-vida Dose terapêutica Dose-equivalência
(tempo de ação) (horas) (miligramas) (diazepam 10mg)
muito curta
Midazolam 1 - 2 7,5 - 30 15 mg
(Dormonid)
curta
Alprazolam 6 - 20 0,75 - 4 1 mg
(Frontal, Apraz)
Bromazepam 6 - 20 1,5 - 18 6 mg
(Lexotan)
Lorazepam 9 - 22 2 - 6 2 mg
(Lorax)
intermediária
Clordiazepóxido 10 - 30 15 - 100 25 mg
(Psicosedin)
Clonazepam 20 - 40 1 - 6 2 mg
(Rivotril)
Diazepam 14 - 60 5 - 40 10 mg
(Valium)
FONTE: Hollister LE, Csernansky: Clinical Pharmacology of Psychoterapeutic Drugs. New
York: Churchill Livinstone, 1990.
clordiazepóxido
desmetilclordiazepóxido demoxepam nordiazepam oxazepam
c
o
n
j
u
g
a
ç
ã
o
diazepam temazepam
lorazepam
desalquilação desalquilação desalquilação
oxidação redução hidroxilação
FIGURA 1.5: Processo de metabolização hepática dos benzodiazepínicos. Substâncias como o clordiazepóxido e o diazepam possuem metabólitos
ativos e passam por várias etapas até a conjugação. Desse modo, demandam mais trabalho por parte do fígado. O lorazepam e o oxazepam (este
último indisponível no Brasil) não possuem metabólitos ativos e passam apenas pela conjugação. Por isso, estão indicados para situações de
insuficiência hepática. FONTE: Hollister LE, Csernansky: Clinical Pharmacology of Psychoterapeutic Drugs. New York: Churchill Livinstone, 1990.
Os benzodiazepínicos (BDZ) são o tratamento de escolha consensual e devem ser administrados tão logo o
diagnóstico seja estabelecido. Todos os BDZ podem ser utilizados, mas o diazepam e o clordiazepóxido são os
mais aconselháveis, por possuírem meia-vida prolongada (quadro 1.11) e serem mais utilizados no tratamento da
SAA. Em pacientes com insuficiência hepática, a dose deve ser adaptada ou então BDZ que passam apenas pela
conjugação hepática (figura 1.5) devem ser escolhidos. No Brasil, o lorazepam é o único com estas características
disponível comercialmente .
Os BDZ devem ser administrados
preferencialmente por via oral. A
administração intramuscular é
errática para o diazepam e
clordiazepóxido. O mesmo não
ocorre com o lorazepam, mas
sua apresentação injetável não
está disponível no Brasil. O uso
endovenoso deve ser feito em
último caso, de forma lenta,
observando o padrão respiratório
do indivíduo. Os BDZ precipitam
no soro fisiológico e por isso não
devem ser prescritos desta forma.
Farmacoterapia para a
síndrome de abstinência leve
Os pacientes que apresentam
uma forma leve / moderada de
tremores, transpiração,
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 9
QUADRO 1.12: CLINICAL WITHDRAWAL
ASSESSMENT REVISED (CIWA-AR)
1. VOCÊ SENTE UM MAL-ESTAR NO ESTÔMAGO
(ENJÔO)? VOCÊ TEM VOMITADO?
0 NÃO
1 NÁUSEA LEVE, SEM VÔMITO
4 NÁUSEA RECORRENTE, COM ÂNSIA DE VÔMITO
7 NÁUSEA CONSTANTE, COM VÔMITO
2. TREMOR NOS BRAÇOS ESTENDIDOS E NOS
DEDOS SEPARADOS.
0 NÃO
1 NÃO VISÍVEL, MAS SENTE
4 MODERADO, COM OS BRAÇOS ESTENDIDOS
7 SEVERO, COM OS BRAÇOS ESTENDIDOS
3. SUDORESE
0 NÃO
1 DISCRETA, MAIS EVIDENTE NA PALMA DA MÃO
4 FACIAL
7 PROFUSA
4. TEM SENTIDO COCEIRAS, SENSAÇÃO DE
INSETOS ANDANDO PELO CORPO,
FORMIGAMENTOS, PINICAÇÕES?
5. VOCÊ TEM OUVIDO SONS A SUA VOLTA? ALGO
PERTURBADOR, SEM DETECTAR NADA POR
PERTO?
6. AS LUZES TÊM PARECIDO MUITO
BRILHANTES? DE CORES DIFERENTES? VOCÊ
TEM VISTO ALGO QUE LHE TEM PERTURBADO?
VOCÊ TEM VISTO COISAS QUE NÃO ESTÃO
PRESENTES?
PARA RESPONDER ÀS PERGUNTAS 4, 5 E 6
0 NÃO
1 MUITO LEVE
2 LEVE
3 MODERADO
4 ALUCINAÇÕES MODERADAS
5 ALUCINAÇÕES GRAVES
6 ALUCINAÇÕES EXTREMAMENTE GRAVES
7 ALUCINAÇÕES CONTÍNUAS
7. VOCÊ SENTE NERVOSO?
OBSERVAÇÃO DO ENTREVISTADOR
0 NÃO
1 MUITO LEVE
4 LEVEMENTE
7 ANSIEDADE GRAVE, EM ESTADO DE PÂNICO
8. VOCÊ SENTE NA CABEÇA? TONTURA, DOR,
APAGAMENTO?
0 NÃO
1 MUITO LEVE
2 LEVE
3 MODERADO
4 MODERADO/GRAVE
5 GRAVE
6 MUITO GRAVE
7 EXTREMAMENTE GRAVE
9. AGITAÇÃO
0 NORMAL
1 UM POUCO MAIS QUE A ATIVIDADE NORMAL
4 MODERADAMENTE
7 CONSTANTE
10. QUE DIA É HOJE? ONDE VOCÊ ESTÁ?
QUEM SOU EU?
OBSERVAÇÃO DO ENTREVISTADOR
0 ORIENTADO
1 INCERTO SOBRE A DATA, RESPOSTA INSEGURA
4 DESORIENTADO COM DATA, NÃO MAIS QUE 2
DIAS
3 DESORIENTADO COM DATA, MAIS QUE 2 DIAS
7 DESORIENTADO COM O LUGAR E A PESSOA
0 - 9 SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA LEVE
10 - 18 SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA MODERADA
19 - 70 SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA GRAVE
FONTE: Sullivan JT, Sykora K, Schneiderman J, Naranjo CA,
Sellers EM. Assessment of alcohol withdrawal: the Clinical
Institute Withdrawal Assessment Alcohol Scale (CIWA-AR). Br
J Addict 1989; 84: 1353-7.
palpitação, inquietação, perda do apetite, naúsea e vômito
(quadro 1.12), podem fazer a desintoxicação ambulatorialmente,
comparecendo à clínica ou hospital para serem acompanhados pelo
médico responsável. Os retornos devem ser diários e as consultas,
breves (15 - 20 minutos). Os parâmetros de eficácia do tratamento
são a melhora progressiva dos sintomas da síndrome de abstinência
e a ausência de sedação excessiva ao longo da desintoxicação.
Geralmente, quando a retirada é muito rápida, os sintomas reaparecem
em algum grau. Por outro lado, quando se mostra lenta, o paciente
começa a se sentir sedado com doses que outrora lhe deixavam
tranqüilo e vigil.
A dose inicial de BDZ dependerá da intensidade dos sintomas e da
experiência do profissional. Habitualmente, a dose preconizada varia
de 20 - 40 mg de diazepam ao dia, divididos em duas ou mais tomadas
(quadro 1.13). A reposição de vitamínica deve ser feita inicialmente
por via intramuscular, devido à baixa produção de fator intrínseco
pela mucosa gástrica. A partir do décimo dia, pode passar a ser feita
por via oral. A farmacoterapia da SAA grave será abordada no capítulo
sobre o delirium tremens, a seguir.
QUADRO 1.13: PRESCRIÇÃO PARA PACIENTES COM SAA LEVE
(NÃO COMPLICADA) EM TRATAMENTO AMBULATORIAL.
1. Dieta leve
2. Oferecer líquidos à vontade
3. Diazepam 10 mg (VO) (1)
1 comprimido às 8 horas
1 comprimido às 14 horas
2 comprimidos às 20 horas
Diminuir 1/2 comprimido a cada dois dias
4. Tiamina 100mg (IM)
1 ampola por 10 dias
A partir do 11° dia: 1 cp de 300mg (VO) às refeições
5. Ácido fólico 5 mg (VO)
1 comprimido às refeições
6. Propiciar um ambiente calmo, confortável, com pouca
estimulação de luz e som.
7. Proibido dirigir autos/motos ou operar máquinas.
8. Retornos diários ao ambulatório.
9. Procurar um serviço de emergência em caso de piora importante
dos tremores, sudorese, freqüência dos vômitos, inquietação
ou se houver surgimento de alucinações e/ou desorientação .
FONTE: Laranjeira R, Jerônimo C, Marques ACPR et al. Consenso sobre a
SAA e seu tratamento. Rev Bras Psiquiatr 2000; 22(2): 62-71.
(1)A prescrição de BDZ depende da gravidade dos sintomas. A dose inicial
deve estar entre 20 e 40 mg. A presença de sintomas ou de sedação são
os parâmetros para o aumento ou diminuição da dose. Assim que se
encontrar uma dose estável, ou seja, aquela que elimina todos os sintomas
sem sedar o paciente, a mesma deve ser descontinuada ao longo de 7 a10
dias. A prescrição de clordiazepóxido ou lorazepam deve ser feita na
dose-equivalência de diazepam prescrita (quadro 11).
10 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Edwards G. O tratamento do alcoolismo. Porto Alegre: Artmed; 1999.
Erazo GAC, Pires MCB. Manual de urgências em pronto-socorro. Rio de Janeiro: Medsi; 2000.
Finn DA, Crabbe JC. Exploring alcohol withdrawal syndrome. Alcohol World Health Res 1997; 21(2): 149-56.
Hollister LE, Csernansky: Clinical Pharmacology of Psychoterapeutic Drugs. New York: Churchill Livinstone, 1990.
Laranjeira R, Nicastri S, Jerônimo C, Marques ACPR. Consenso sobre a Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA)
e o seu tratamento. Rev Bras Psiquiatr 2000, 22(2): 62-71.
Littleton JM, Harper JC. Tolerância e dependência celular. In: Edwards G, Lader M. A natureza da dependênciad de
drogas. Porto Alegre: Artmed, 1994.
Littleton J. Neurochemical mechanisms underlying alcohol withdrawal. Alcohol World Health Res
1998; 22(1): 13-24.
Maciel C, Kerr-Corrêa F. Complicações psiquiátricas do uso crônico do álcool: síndrome de abstinência e outras
doenças psiquiátricas. Rev Bras Psiquiatr 2004; 26(supl. 1): 47-50.
Marques ACPR, Ribeiro M. Álcool. In: Ribeiro M, Marques ACPR. Usuários de substâncias psicoativas. São Paulo:
CREMESP / AMB; 2002.
Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação dos Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 -
descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artmed; 1993.
Sullivan JT, Sykora K, Schneiderman J, Naranjo CA, Sellers EM. Assessment of alcohol withdrawal: the Clinical
Institute Withdrawal Assessment Alcohol Scale (CIWA-AR). Br J Addict 1989; 84: 1353-7.
Trevisan LA, Boutros N, Petrakis IL, Krystal JH. Complications of alcohol withdrawal. Alcohol World Health Res.
1998; 22(1): 61-6.
Vaillant G. História natural do alcoolismo. Porto Alegre: Artmed; 1999.
Zaleski M, Morato GS, Silva VA, Lemos T. Aspectos neurofarmacológicos do uso crônico e da síndrome de abstinência
do álcool. Rev Bras Psiquiatr 2004; 26(supl. 1): 40-2.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 11
12 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
2. DELIRIUM TREMENS E OUTRAS COMPLICAÇÕES DA
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL
COMPLICAÇÕES DA SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL (SAA)
Conforme o capítulo anterior, os casos de síndrome de abstinência do
álcool são em sua maior parte leves, de evolução benigna, podendo
ser tratados com eficácia e segurança ambulatorialmente. No entanto,
uma pequena parte destes pode complicar, com piora e exacerbação
dos sintomas de abstinência e / ou com aparecimento de convulsões e
rebaixamento do nível de consciência (quadro 2.1). São sinais que
requerem atenção por parte do médico, uma vez que o tratamento
frente a estas situações é relativamente simples e seguro, mas a mortalidade entre os casos não tratados pode
chegar a 20%.
CONVULSÕES RELACIONADAS À SINDROME DE ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL
Cerca de 10 a 15% de usuários de álcool apresentam crises convulsivas, tipo grande mal durante seus períodos de
abstinência. O consumo do álcool diminui o limiar convulsivo, mas deve ser utilizado por longos períodos para
desencadea-las (sugere-se pelo menos 5 anos de uso contínuo). Em mais de 90% dos casos, ocorrem entre 7
e 38 horas após a última dose, com pico após 24 horas (figura 2.1). Em 40% dos casos, as crises ocorrem
isoladamente. Nos pacientes que apresentam mais de uma crise, elas ocorrem geralmente em número limitado.
Metade das tomografias de crânio de pacientes acometidos apresentam algum tipo de lesão estrutural e um terço
desses pacientes apresentam sinais neurológicos focais ao exame físico.
Indivíduos com história prévia de epilepsia
ou lesão do SNC estão mais predispostos
a este tipo de complicação. Além disso,
convulsões durante a SAA podem indicar
a presença de outras alterações, tais como
hipomagnesemia, hipoglicemia, alcalose
respiratória, aumento do sódio intracelular
e traumatismo com hemorragia
intracraniana.
Um terço das convulsões não tratadas
evoluem para o delirium tremens. Desde
modo, é fundamental que todas as crises
QUADRO 2.1: PRINCIPAIS COMPLICAÇÕES
DA SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA DO ÁLCOOL
* Convulsões
* Síndrome de Wenicke-Korsakoff
* Delirium tremens
FONTE: Finn DA, Crabbe JC. Exploring alcohol
withdrawal syndrome. Alcohol World Health Res
1997; 21(2): 149-56.
FIGURA 2.1: Relação entre a interrupção do consumo de álcool e a incidência de
sintomas de abstinência e suas complicações. FONTE: Trevisan LA, Boutros N, Petrakis
IL, Krystal JH. Complications of alcohol withdrawal. Alcohol World Health Res. 1998;
22(1): 61-6.
70
60
50
40
30
20
10
0
1 2 3 4 5 6 14
Incidência dos casos (%)
Dias após parar de beber
convulsões
hiperatividade autonômica e / ou confusão mental
tremores
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 13
convulsivas sejam tratadas. Pacientes sem história anterior
de convulsões relacionadas à SAA respondem bem apenas
aos BDZ instituídos para o tratamento da SAA. O diazepam
(ou um BDZ de ação longa) é a medicação de escolha, na
dose de 10 ou 20 mg, via oral. O uso endovenoso é
especialmente indicado durante os episódios convulsivos.
Quando houver história prévia de epilepsia, devem ser
mantidos os medicamentos já utilizados pelo paciente. Em
caso de crises isoladas não há indicação de carbamazepina,
tampouco de difenil-hidantoína (fenitoína) no tratamento
dessa complicação da SAA.
SÍNDROME DE WERNICKE - KORSAKOFF (SWK)
A síndrome de Wernicke-Korsakoff (SWK) é uma forma de
dano cerebral, por vezes letal, associada ao uso indevido de
álcool. A síndrome é composta por duas entidades
nosológicas distintas, porém relacionadas: a encelopatia
de Wernicke e a psicose de Korsakoff.
Cerca de 10 - 20% dos dependentes de álcool apresentam
esta complicação, aparecendo principalmente entre a quarta
e a quinta década de vida. A SWK está associada ao
déficit de tiamina (vitamina B1) no organismo. Qualquer
situação alteradora do processo de obtenção de tiamina pelo
organismo - síndrome de má-absorção, anorexia, hiperemese
gravítica, obstrução gastrointestinal, gastrectomia (parcial ou
total) alimentação parenteral prolongada, tireotoxicose e
hemodiálise - pode desencadea-la, mas o consumo excessivo
e prolongado do álcool é a causa de 90% dos casos.
A tiamina tem papel fundamental na oxidação dos
carboidratos. A metabolização da glicose pelas células nervosas depende de enzimas cujo cofator enzimático é a
tiamina pirofosfato (quadro 2.2). Essa, por sua vez, é obtida a partir da fosforilação da tiamina pela enzima
tiamina fosofoquinase. O consumo de álcool interfere no metabolismo da tiamina no organismo de diversas
maneiras: diminui o aporte, prejudica a absorção, o armazenamento e a ação das enzimas tiamino-dependentes
(quadro 2.2, figura 2.2). Neste último caso, o álcool diminui a ação da tiamina fosfoquinase, além de aumentar a
metabolização da mesma (quadro 2.2). Isso provoca uma depleção de tiamina pirofasfato, reduzindo, assim, o
consumo de glicose pelos neurônios em até 60%. Os neurônios trabalham no limite energético, sem reservas.
QUADRO 2.2: INTERFERÊNCIAS DO ÁLCOOL NO
METABOLISMO DA TIAMINA NO ORGANISMO.
APORTE
Déficit nutricional, uma vez que as “calorias vazias” do álcool
provocam saciedade e inibem a ingestão de alimentos, muitas
vezes por dias. Deste modo, há prejuízo no aporte das vitaminas
hidrossolúveis não produzidas pelo organismo (complexo B e ácido
ascórbico).
Mau hábito alimentar, pobre em vitamina B1 e rico em carboidratos
(CH). Como a quebra dos CH é realizada por enzimas tiaminodependentes,
alfa-ketoglutarato desidrogenase e piruvato
desidrogenase, os níveis de tiamina ficam ainda mais prejudicados.
ABSORÇÃO
Pangastrite, comprometendo a produção de fator intrisneco pela
região fundica do estômago. O fator intrínseco é fundamental
para a absorção da tiamina na luz intestinal.
Ácido fólico (vitamina B9). A carência desta vitamina (como é o
caso dos usuários crônicos de grandes quantidades de álcool)
interfere negativamente na absorção de tiamina.
Vômitos, prejudicando o processo e o tempo adequados de
absorção dos nutrientes.
ARMAZENAMENTO
Hepatopatias alcoólicas (hepatite, esteatose, cirrose),
comprometem a capacidade do fígado em armazenar tiamina.
AÇÃO ENZIMÁTICA
Redução da enzima ativadora da tiamina. Para servir como
cofator de enzimas responsáveis pela produção de energia
direcionada para a sintese de proteínas e mielina, a tiamina precisa
ser convertida em uma forma ativa pela enzima tiamina
pirofosfoquinase. O uso prolongado do álcool reduz a atividade
desta enzima, originando menos tiamina ativada.
Ativação de enzimas metabolizadoras da tiamina ativada. Além
de comprometer a formação, o consumo indevido e prolongado
de álcool, ativa enzimas destruidoras da tiamina ativada. Através
destes mecanismos, o álcool pode reduzir a atividade de
enzimas tiamino-dependentes e afetar o metabolismo cerebral,
mesmo quando o aporte e a absorção da vitamina estão
normais.
FONTE: [1] Hoyumpa, AM: Mechanisms of thiamine deficiency
in chronic alcoholism. American Journal of Clinical Nutrition
33:2750-2761, 1980. [2] Langlais, PJ: Role of diencephalic
lesions and thaimine deficiency in Korsakoff’s amnesia: Insights
from animal models. In Squire, LR, and Butters, N, eds.
Neuropsychology of Memory. New York: Guildford Press, 1992.
[3] Mesulam, MM; Van Hoesen, GW; and Butters, N: Clinical
manifestations of chronic thiamine deficiency in the rhesus
monkey. Neurology 27:239-245, 1977.
14 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
FIGURA 2.2: Os complexos mecanismos envolvidos na neurotoxicidade secundária ao déficit de tiamina (vitamina B1). Associado à queda
da ingestão de tiamina, o consumo de grandes quantidade de álcool por longos períodos compromete não apenas a absorção, mas também o
armazenamento hepático e a fosforilação da tiamina (tiamina ativada). A falta de tiamina fosforilada diminui a atividade das enzimas alfa-ketoglutarato
desidrogenase e piruvato desidrogenase, responsáveis pela produção de energia destinada à sintese de proteínas e mielina pelos neurônios. O
neurônio trabalha sempre no limite energético, sem reservas. Deste modo, tais oscilações provocam lesões ou mesmo morte celular, que se
traduzirão em déficits de memória e aprendizado e provavelmente quadros demenciais, potencializados pela ação tóxica direta do álcool.
FONTE: [1] Hoyumpa, AM: Mechanisms of thiamine deficiency in chronic alcoholism. American Journal of Clinical Nutrition 33:2750-2761, 1980.
[2] Langlais, PJ: Role of diencephalic lesions and thaimine deficiency in Korsakoff’s amnesia: Insights from animal models. In Squire, LR, and Butters, N,
eds. Neuropsychology of Memory. New York: Guildford Press, 1992. [3] Mesulam, MM; Van Hoesen, GW; and Butters, N: Clinical manifestations of
chronic thiamine deficiency in the rhesus monkey. Neurology 27:239-245, 1977.
Diminuição dos níveis de tiamina pirofosfato (‘tiamina ativada’)
Diminuição da absorção
da tiamina pelo trato
gastrintestinal
Diminuição da
fosforilação da
tiamina no cérebro
Ingestão deficitária
de tiamina
Diminuição da oxidação do piruvato
Aumento
de ácido
láctico
Diminuição da
síntese de
neurotransmissores
Diminuição
da síntese de
ATP
Diminuição da atividade da enzima α-ketoglutarato desidrogenase
Lesões bioquímicas Morte celular
Lesões diencefálicas
Déficits de memória
e aprendizado
Demência
Dano cortical por
ação direta do
álcool
Déficits
cognitivos
Consumo excessivo e prolongado de álcool
fenômeno cientificamente comprovado fenômeno provável
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 15
QUADRO 2.3: ENCEFALOPATIA DE WERNICKE.
* Confusão mental
* Oftalmoplegia e nistagmo (vertical e horizontal)
* Ataxia
FONTE: Zubaran et al. Aspectos clínicos e
neuropatológicos da síndrome de Wernicke-Korsakoff.
Rev Saúde Pub 1996; 30(6): 602-8.
QUADRO 2.4: SINAIS E SINTOMAS QUE INDICAM
A PRESENÇA DA ENCEFALOPATIA DE
WERNICKE.
Usuários crônicos de álcool com qualquer um destes:
* Confusão mental
* Rebaixamento do nível de consciência
* Oftalmoplegia e nistagmo (vertical e horizontal)
* Ataxia
* Distúrbios de memória
* Hipotermia com hipotensão
FONTE: Royal College of Physicians. ALCOHOL - can
the NHS afford it? London: RCP; 2001.
FONTE: Royal College of Physicians. ALCOHOL - can
the NHS afford it? London: RCP; 2001.
QUADRO 2.5: REPOSIÇÃO DE TIAMINA EM
INDIVÍDUOS COM DIAGNÓSTICO OU RISCO DE
ENCEFALOPATIA DE WERNICKE.
Diagnóstico confirmado
(confusão mental, ataxia e oftalmoplegia)
1. Duas ampolas de Complexo B (EV) no SF0,9%
utilizado na hidratação do indivíduo (3 - 5 dias).
2. Tiamina 100mg (EV) ao dia lento até a melhora da
síndrome (3 - 5 dias)
3. Magnésio 50% 2 ml (IM), se houver hipomagnesemia
Diagnóstico presumido
(sinais comuns à SWK, SAA e delirium tremens)
1. Duas ampolas de Complexo B (EV) no SF0,9%
utilizado na hidratação do indivíduo (3 - 5 dias).
2. Tiamina 100mg 1 ampola (EV) lento
3. Tiamina 200mg (IM) por 7 - 10 dias.
4. Magnésio 50% 2 ml (IM), se houver hipomagnesemia
Período de alta ou após o décimo dia
1. Tiamina 50mg (VO) às refeições.
2. Ácido Fólico 5mg (VO) às refeições
Deste modo, uma redução no aporte de glicose para a célula
gera sofrimento, lesão e morte celular (figura 2.2). O resultado
são lesões focais no tálamo, hipotálamo, corpos mamilares e
assoalho do quarto ventrículo, degeneração do verme cerebelar
e neuropatia periférica. Histologicamente encontram-se células
inflamatórias, hemorragias petequiais e perda neuronal.
A encefalopatia de Wernicke tem início abrupto, com
rebaixamento do nível de consciência, distúrbios oculomotores e
ataxia cerebelar. O sintoma mais comum é a confusão mental
(82%), seguido dos distúrbios oculomotores (29%) e ataxia (23%).
Não é necessária a presença da tríade para o diagnóstico. Os
distúrbios oculomotores incluem nistagmo (horizontal ou vertical)
e paralisia ocular completa (oftalmoplegia). A ataxia pode preceder
a confusão mental em dias e permanecer algumas semanas após
sua resolução desta.
A ausência de resposta clínica clara em 48-72 horas sugere mau
prognóstico. A mortalidade é ao redor de 17%. Embora a tríade desapareça em torno de um mês após o tratamento,
80 a 85% de todos os casos de encefalopatia de Wernicke evoluem para a síndrome amnéstica ou psicose de
Korsakoff .
O tratamento da encefalopatia de Wernicke deve ser prontamente
instituído, tendo em vista o risco de morte e de evolução para a
psicose de Korsakoff. A administração de tiamina previne a
progressão da doença e reverte as anormalidades cerebrais que
não tenham provocado danos estruturais estabelecidos.
No entanto, a semelhança entre a encefalopatia de Wernicke e a
SAA grave, o delirium tremens e mesmo a intoxicação alcoólica
(quadro 2.4), faz com que esta patologia seja subdiagnosticada
com bastante freqüência. Apenas um terço dos casos apresenta
a oftalmoplegia, sinal mais característico da encefalopatia. Desde
modo, todos os casos de sindrome de abstinência e delirium
devem ser tratados presumindo a presença da encefalopatia
de Wernicke.
Por se tratar de uma situação emergencial, casos confirmados
devem receber 100mg de tiamina endovenosa até a oftalmoplegia
melhorar (quadro 2.5). O desaparecimento da ataxia pode levar
dias ou semanas. Uma das causas de não-resposta ao tratamento
16 CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30.
é a hipomagnesemia. Portanto o sulfato de magnésio (1-2ml
em solução de 50%) deve ser administrado por via
intramuscular concomitantemente. Casos onde o diagnóstico
é presumido, a reposição de tiamina pode ser feita pela via
intramuscular (quadro 2.5). Após um período de uso
endovenoso / intramuscular, o indivíduo pode passar a receber
o aporte vitamínico por via oral (quadro 2.5).
A psicose de Korsakoff ou síndrome amnéstica é
classicamente descrita como uma condição crônica na qual
ocorre um predomínio de amnésia retrógrada e anterógrada,
secundária e conseqüente ao curso crônico da encefalopatia
de Wernicke ou após delirium tremens. Em alguns casos pode
progredir de forma insidiosa. A confabulação, considerada o
sintoma típico, muitas vezes não está presente de forma
marcante e não é pré-requesito diagnóstico.
Como o próprio nome sugere, os defeitos amnésticos são os
mais evidentes e estão mais efetados do que qualquer outra
perturbação cognitiva presente. Podem ocorrer alterações de
comportamento sugestivas de lesão no lobo frontal (apatia,
inércia, negligência com o autocuidado, perda de insight), mas
não são necessárias para o diagnóstico. Boa parte dos
indivíduos acometidos evolui com empobrecimento cognitivo
(pensamento, aprendizagem, atenção) e afetivo (embotamento,
isolamento) importantes.
Ao contrário da depressão maior e de alguns quadros
demenciais, onde o déficit de memória é geralmente percebido
com ansiedade e angústia, pacientes com síndrome amnéstica possuem pouca ou nenhuma crítica acerca de sua
amnésia e dos agentes causais. Tal ausência de crítica os expõe a uma série de complicações, muitas vezes
QUADRO 2.6: CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DA
PSICOSE DE KORSAKOFF OU SÍNDROME
AMNÉSTICA.
Uma síndrome associada a um comprometimento
crônico e proeminente da memória recente; a memória
remota está às vezes comprometida, enquanto que a
imediata está preservada. Perturbações da orientação
temporal e cronológica de eventos são usualmente
evidentes, assim como as dificuldades em aprender
material novo. Confabulação pode ser marcante, mas
não está invariavelmente presente. Outras funções
cognitivas estão em geral relativamente bem
preservadas e os defeitos amnésticos são
desproporcionais em relação às outras perturbações.
Diretrizes diagnósticas
A síndrome amnéstica, induzida por álcool ou outras
substâncias psicoativas, aqui codificada, deve
preeencher os critérios gerais para síndrome amnéstica
orgânica. Os requisitos primários para este diagnóstico
são:
(1) comprometimento de memória recente
(aprendizagem de material novo); perturbações do
sentido de tempo (rearranjos da seqüência cronológica,
superposição de eventos repetidos em um só, ...).
(2) ausência de defeitos da memória imediata, de
comprometimento de consciência e de
comprometimento cognitivo generalizado.
(3) história ou evidência objetiva de uso crônico (e
particularmente em altas doses) de álcool ou drogas.
FONTE: CID - 10 / OMS (1993)
QUADRO 2.7: CONFABULAÇÃO
As confabulações constituem no relato de coisas fanstásticas que, na realidade, nunca aconteceram. Em grande parte, resultam de uma
alteração da memória de fixação e de uma incapacidade para distinguir as imagens produzidas pela fantasia. Na confabulação, lembranças
isoladas autênticas completam erroneamente lacunas da memória. Isto pode gerar tanto conteúdos absurdos e inverossímeis (oniróides),
como histórias providas de lógica e sentido.
Assim, a invenção livre é tomada por acontecimentos vividos (as confabulações preenchem um vazio de memória e se mostram como que
criadas para este fim). Ao mesmo tempo não há compromisso com o descrito. Uma mesma pergunta feita em períodos de tempo diferentes,
produzirá respostas distintas. Isso não acontece, por exemplo, no trantorno delirante, quando a nova leitura da realidade é estruturada e
estável, não mudando ao longo do tempo.
FONTE: Paim I. Psicopatologia. São Paulo: EPU, 1986.
CADERNOS DO AMBULATÓRIO DO QUINTO ANO 2005; 1(SUPL 1): 1 - 30. 17
inviabilizadoras do convívio social (não cumprir compromissos, contestar promessas ou dívidas, se mostrar menos
hábil para negociar e resolver questões do dia-a-dia). A psicose de Korsakoff não é progressiva (como o mal de
Alzheimer) e em geral há algum padrão de melhora com a abstinência, longe de significar, porém, o retorno às
atividades habituais. De fato, ao contrário do que ocorre com a encefalopatia de Wernicke, o quadro clínico da
síndrome de Korsakoff não reverte sensivelmente após a reposição de tiamina. Além disso, tais indivíduos se
apresentam para tratamento com grandes limitações psicossociais
decorrentes do seu uso crônico e intenso de álcool anterior
(desemprego, descrédito familiar, abandono social ...). O déficit
de memória dificulta a elaboração de um contrato entre o médico,
o paciente e a família. Muitas vezes, o paciente continua a beber,
justificando (ou negando) tal atitude com fabulações
inconsistentes, porém refratárias à qualquer argumentação. Isso
pode levar o profissional e os familiares a buscar tratamento
incialmente em ambiente fechado e protegido. O diagnóstico
diferencial com demência alcóolica nem sempre é fácil.
Quanto à farmacoterapia, a clonidina (0,3mg 2 vezes ao dia),
tem sido associada à melhora discreta da memória recente. Esta
também foi utilizada em combinação com os inibidores seletivos
da recaptação de serotonina (ISRS). O propanolol (20mg/kg/dia) já foi ministrado visando ao controle dos
sintomas agudos. Recentemente, estudos abertos e relatos de caso têm encontrado melhora dos padrões cognitivos
em pacientes recebendo agentes anticolinesterásicos. Infelizmente nenhum desses tratamentos parece ser
muito eficaz. Desse modo, os pacientes se beneficiam mais com abordagens cognitivo-comportamentias e
vocacionais voltadas à reorganização do seu cotidiano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário